Trump constrange presidente da África do Sul com desinformação e vira espetáculo: Trump, a África do Sul e o mito do ‘genocídio branco’

Donald Trump, mestre das frases bombásticas e dos tuítes inflamáveis, mais uma vez transforma a política internacional em um teatro, onde a verdade cede lugar ao espetáculo. Em uma recente ocasião, Trump constrangeu publicamente o presidente da África do Sul ao insistir na existência de supostos vídeos que comprovariam um “genocídio branco” no país — uma teoria que há anos circula em fóruns obscuros, alimentada por grupos de extrema direita ao redor do mundo, mas que carece de qualquer comprovação factual ou respaldo institucional.
O episódio, tão grotesco quanto simbólico, expõe não apenas a imprudência política de um ex-presidente dos Estados Unidos, mas também um fenômeno contemporâneo mais preocupante: a espetacularização da desinformação e o uso estratégico de narrativas falsas para reforçar ideologias populistas e racistas.
No constrangimento imposto ao presidente sul-africano, quem de fato sai envergonhada não é a África do Sul, mas a própria democracia global, fragilizada pela incapacidade de conter líderes que se alimentam da mentira e a transformam em arma política. Trump, ao disseminar essa teoria do “genocídio branco”, reverbera um discurso profundamente colonialista, que inverte a lógica histórica da opressão: transforma os antigos opressores — os brancos que implementaram o apartheid — em supostas vítimas, apagando deliberadamente as sequelas profundas do regime racista que vigorou no país até 1994.

A África do Sul, desde o fim do apartheid, vive o desafio monumental de reconstruir uma sociedade marcada por desigualdades abissais, violência estrutural e tensões étnicas que não se resolvem de um dia para o outro. Porém, insinuar que há uma política deliberada de extermínio contra brancos é, além de desonesto, profundamente irresponsável. Não há dados sérios ou relatórios de organismos internacionais que sustentem a tese de genocídio. Ao contrário, a maioria dos estudos aponta para a persistência de crimes violentos que atingem todas as classes e etnias, reflexo de um país ainda profundamente desigual.
O constrangimento, portanto, não é apenas diplomático, mas ético. Ao sugerir a existência desses vídeos — cuja autenticidade nunca foi verificada —, Trump mobiliza imagens, muitas vezes forjadas ou descontextualizadas, para criar uma sensação de urgência e pânico entre seus apoiadores, especialmente aqueles que veem na “ameaça” à população branca uma metáfora para seus próprios medos e ressentimentos no Ocidente.
Este episódio também revela o quanto o debate público internacional está refém de lideranças que desprezam a mediação racional dos fatos. Trump não precisa de provas; basta-lhe a suspeita, a insinuação, o vídeo duvidoso compartilhado em redes sociais. O constrangimento que ele impõe ao presidente sul-africano é calculado: visa reforçar sua imagem como suposto defensor da “civilização ocidental”, em oposição a governos que, segundo essa lógica deturpada, estariam permitindo o “colapso” do homem branco.
A reação do presidente da África do Sul foi, como esperado, diplomática, mas inevitavelmente atravessada pela indignação de quem vê sua nação ser, mais uma vez, reduzida a um estereótipo, a um palco de horror fabricado por quem nunca se preocupou, de fato, com a África ou com a justiça social. Mais grave ainda: esse tipo de acusação interfere no complexo processo de reconciliação sul-africano, ao lançar desconfiança sobre políticas públicas como a reforma agrária, essenciais para corrigir décadas de desigualdade fundiária, mas que são cinicamente interpretadas por alguns como uma “perseguição” aos brancos.
Por trás do espetáculo político encenado por Trump, esconde-se uma estratégia global bem mais ampla: a de ressuscitar velhos fantasmas — como o do “perigo negro” — para mobilizar afetos conservadores e justificar políticas excludentes e autoritárias em diversas partes do mundo.
Em última análise, o episódio escancara a falência de uma ética política que deveria ser pautada por compromisso com a verdade e responsabilidade com os efeitos de cada palavra dita, sobretudo quando se ocupa uma posição de poder e influência global. Quando líderes como Trump constroem sua narrativa política sobre alicerces tão frágeis quanto vídeos não verificados e teorias conspiratórias, não são apenas as relações diplomáticas que sofrem: é a própria ideia de civilização que se degrada, transformada em um espetáculo grotesco, onde a mentira é aplaudida e a verdade, vaiada.
O constrangimento, portanto, é coletivo. E nós, como sociedade global, precisamos decidir: seguiremos espectadores passivos deste teatro da desinformação ou tomaremos as rédeas de um debate público mais sério, crítico e comprometido com a justiça histórica?